* Por Débora Melo e Paulo Victor Melo
Em tempos de inúmeras propostas que visam a redução da idade penal (apenas no Congresso Nacional existem 25 projetos), é fundamental resgatar a importância do Estatuto da Criança e do Adolescente, reafirmar o seu caráter avançado no que diz respeito à garantia dos direitos de crianças e adolescentes e, ao mesmo tempo, discutir como o Brasil ainda está distante de assegurar a proteção integral de meninos e meninas.
É a partir do ECA que crianças e adolescentes passam a ser vistos como sujeitos de direitos. Antes de 1990, até quando vigorou o Código de Menores (promulgado em 1927), crianças e adolescentes eram objeto de vigilância e tutela do Estado, e não indivíduos que têm direitos e necessidade de proteção. É a partir do ECA, portanto, que as opiniões e direitos fundamentais de meninos e meninas são considerados no momento de formulação das políticas públicas e na agenda política, econômica, social, orçamentária e educacional.
A principal mudança de paradigma trazida pelo ECA e, infelizmente, ainda pouco conhecida pela população, pouco difundida pela mídia e pouco efetivada pelo poder público é, sem dúvida, a noção de proteção integral. O artigo 4º do estatuto determina que “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com ABSOLUTA PRIORIDADE, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”.
Ao estabelecer esse conceito, o ECA aponta que os direitos e a proteção de crianças e adolescentes devem ter prioridade absoluta nas políticas públicas de educação e saúde, nas ações de cultura, esporte e lazer, nos orçamentos públicos, nos conteúdos da televisão e do rádio, etc…
O artigo 4º do ECA também rompe com o modelo de centralização do poder sobre as crianças e adolescentes ao afirmar que a proteção desses segmentos é uma co-responsabilidade da família, do Estado e da sociedade. Ou seja, cabe ao poder público, aos pais, mães e demais familiares e a toda a população garantir a proteção diferenciada e prioritária a indivíduos que estão em pleno desenvolvimento físico, psicológico e moral.
Essa perspectiva da garantia dos direitos e da proteção integral das crianças e adolescentes, porém, é abandonada, negligenciada pelos defensores da redução da idade penal. A opção mais rápida e “simples” de responder a um clamor (alimentado em grande medida pelo sensacionalismo das coberturas midiáticas) quando acontece algum ato infracional de alta gravidade cometido por jovens com idade inferior a 18 anos é imediata: reduzir a idade penal, retirar a liberdade de meninos e meninas, encher ainda mais os presídios do país e, assim, submeter crianças e adolescentes a condições degradantes e subumanas já conhecidas pelos adultos que cumprem penas em “depósitos de gente”.
Esse caminho é apresentado, vez ou outra, por políticos (deputados, senadores, governadores, prefeitos…) que se dizem “preocupados com a violência no país”. Porém, se a preocupação fosse, de fato, a criminalidade, caberia aos representantes públicos encarar os problemas de frente, indo às raízes e propondo, em diálogo com a sociedade, saídas que visem a garantia, e não a retirada, de direitos.
Se a redução dos índices de violência praticados por crianças e adolescentes (que são mínimos, se comparados aos crimes cometidos por adultos, como pode ser verificado no quadro 1, ao final do artigo) for realmente a preocupação dos que defendem a redução da idade penal, estes deveriam ouvir o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda)
Apenas ouvir, não. Ouvir, conhecer e buscar meios para efetivar as seis medidas que o Conanda propõe para o enfrentamento à violência: o não contingenciamento dos recursos orçamentários para as políticas públicas da infância e adolescência; o urgente encaminhamento de um projeto de lei que regulamenta a execução das medidas socioeducativas; a imediata implementação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE (lei já formulada a partir de articulações entre a sociedade civil e o poder público), com a liberação de recursos para tal; o cumprimento do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária; e o fornecimento, por parte do Estado, de condições efetivas para a implantação dos dispositivos contidos no ECA.
Se a redução dos índices de violência praticados por crianças e adolescentes for realmente a preocupação dos defensores da redução da idade penal, estes deveriam parar de enganar a população afirmando que “vários países estabelecem 12, 14 ou 16 anos como idade penal” e buscar os dados oficiais e verdadeiros sobre a idade penal em outros países (alguns podem ser conferidos no quadro 2, ao final do artigo).
Se a redução dos índices de violência praticados por crianças e adolescentes for realmente a preocupação dos defensores da redução da idade penal, estes deveriam parar de afirmar que “o ECA protege menores infratores”, ler o Estatuto da Criança e do Adolescente de cima a baixo e, assim, saber que em seu artigo 112 estão previstas como medidas socioeducativas proporcionais ao ato cometido: a advertência, a obrigação de reparar o dano; a prestação de serviços à comunidade; a liberdade assistida; a inserção em regime de semi-liberdade; e a internação em estabelecimento educacional.
Não restam dúvidas: a redução da idade penal não combate a criminalidade, mas, ao contrário, pode aprofundar os ciclos de violência ao colocar crianças e adolescentes em contato com um mundo sem qualquer atenção do Estado (os presídios). Além disso, reduzindo a idade penal o poder público encontra o caminho fácil de se isentar da sua responsabilidade de efetivar políticas públicas que previnam a violência e garantam os direitos das crianças e adolescentes.
Quadro 1 – Responsáveis ou vítimas da violência?
Dados do Ministério da Justiça revelam que apenas 0,9% dos crimes cometidos no Brasil são praticados por adolescentes entre 16 e 18 anos. Desse total, apenas 0,5% são homicídios e/ou tentativas de homicídios.
Por outro lado, o Mapa da Violência aponta que os jovens representam 67,1% das vítimas de armas de fogo no Brasil. Ou seja, as crianças e adolescentes são vítimas, e não responsáveis ou fomentadores, da violência.
O mesmo estudo mostra também que o Brasil é o 4º país que mais mata crianças e adolescentes no mundo, ficando atrás apenas de El Salvador, Venezuela e Trinidad e Tobago. Anualmente, para cada cem mil crianças e adolescentes brasileiras, aproximadamente 44 são mortas.
Entre 1980 e 2010, o número de mortes violentas de crianças e adolescentes cresceu 346%. E o alvo preferido são adolescentes negros. No país mais negro fora da África, o número de jovens negros assassinados é 133% maior que o de brancos assassinados.
Quadro 2 – Números internacionais
A Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU), ratificada por vários países, incluindo o Brasil, estabelece que é proibida a aplicação de penas a crianças e adolescentes iguais ou superiores àquelas aplicadas aos adultos. Embora a Convenção não determine uma idade comum, a tendência mundial é de 18 anos.
Porém, de maneira enganosa é divulgada a idade de responsabilização por atos cometidos (que no Brasil é de 12 anos) como sendo a idade penal. A tabela abaixo exemplifica isso.
País | Responsabilização por ato infracional | Idade penal |
Alemanha | 14 | 18/21** |
Argentina | 16 | 18 |
Bélgica | 16 | 18 |
Brasil | 12 | 18 |
Colômbia | 14 | 18 |
El Salvador | 12 | 18 |
Eslováquia | 15 | 18 |
Eslovênia | 14 | 18 |
Espanha | 12 | 18/21** |
Equador | 12 | 18 |
França | 13 | 18 |
Grécia | 13 | 18/21** |
Guatemala | 13 | 18 |
Holanda | 12 | 18 |
Honduras | 13 | 18 |
Itália | 14 | 18 |
Japão | 14 | 21 |
Paraguai | 14 | 18 |
Peru | 12 | 18 |
**Na Alemanha, Espanha e Grécia há um sistema de “jovens adultos”, no qual mesmo após os 18 anos, a depender do estudo sobre as motivações dos atos cometidos, podem ser aplicadas medidas não-penais aos jovens.
* Paulo Victor Melo é Jornalista, mestre e doutorando em Comunicação e Política. Tem experiência com jornalismo sindical, políticas de comunicação na América Latina, mídias públicas e comunicação e direitos humanos. Débora Melo é jornalista, pós-graduada em Direitos Humanos e militante dos direitos da criança e do adolescente.