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Democracia: qual e para quem?

*Por Júlio César Lopes de Jesus

Nos últimos anos uma palavra ganhou destaque e foi utilizada quase à exaustão em diferentes espaços, a exemplo de casas parlamentares, tribunais, na imprensa, nas ruas. Sua utilização também foi por distintos e, muitas vezes, antagônicos grupos políticos e sociais de nosso país: essa palavra é a DEMOCRACIA!
O termo “democracia”, originalmente, surge na Grécia Antiga, por volta do século V antes de Cristo. Democracia deriva de “demos” (povo) e “kratos” (poder). Nesse sentido, democracia quer dizer “poder do povo”. Essa ideia sugere que caberia ao “povo” decidir os rumos da “polis” (cidade), sua administração e as decisões que impactariam diretamente na vida coletiva dos cidadãos. Embora belo, enquanto “princípio”, desde a Grécia Antiga que o exercício da democracia é visto como um problema. Afinal, quem era mesmo o “povo” na Grécia daquela época? Os ditos “cidadãos”. Nesse seleto grupo não se encontravam, por exemplo, as mulheres, os estrangeiros, os artesãos, os pequenos comerciantes e os escravos. Eles não eram considerados cidadãos e, consequentemente, não poderiam exercer o direito à democracia, ainda que representassem a maioria da população à época.

O conceito de democracia ultrapassou o tempo e as distintas organizações sociais. Os chamados “filósofos contratualistas”, aqui destacando Thomas Hobbes, com o seu livro “Leviatã”, John Locke, autor de “Dois Tratados sobre o Governo Civil” e Jean-Jacques Rousseau, com seu célebre “Contrato Social”, retrataram a democracia de diferentes formas e ângulos. Suas elaborações teóricas, sem sombra de dúvidas, contribuíram para formular o pensamento político moderno do que hoje compreendemos como “democracia burguesa”. Trata-se de uma elaboração que centra “nos indivíduos” (com menor peso para Rousseau) o cerne dos direitos, sobretudo do direito à propriedade privada. Esse tipo de democracia confere maior cidadania aos que detém o poder econômico e, consequentemente, político. A propriedade privada dos meios de produção, a acumulação e concentração de capital, nesse modelo de democracia burguesa, passa a definir que uns são mais cidadãos que outros e, consequentemente, devem ter mais direitos, mais prioridades, mais respeito e dignidade em detrimento dos que pouco ou nada têm. Aqui vale a velha máxima de que “você vale o que tem”. Esse modelo de democracia impera na maioria das organizações sociais e países atualmente, onde o peso econômico lhe confere maior prestígio e poder de exercer os direitos em uma “democracia”. No entanto, esse modelo de democracia burguesa refirmar o sentido da “plutocracia” (a democracia dos ricos), normalizando as desigualdades de condições e oportunidades entre os membros desta sociabilidade burguesa na qual ainda vivemos.

No Brasil, um trecho da Constituição Federal Brasileira de 1988 (a nossa dita “Constituição Cidadã”, sendo o mais avançado documento que conseguimos aprovar em nossa jovem e frágil democracia brasileira), revela nitidamente uma posição que resgata a inspiração político-filosófica da Grécia Antiga, opondo-se ao modelo de democracia burguesa. Este é o pensamento reafirmado no que foi escrito: “Todo poder emana do povo”. Ainda que essa democracia, a lá brasileira, funde-se no campo das abstrações, sem uma real e substantiva democracia que reafirme os valores da liberdade, da igualdade, da justiça social e da cidadania para todas(os), sua inscrição na carta constitucional no Brasil representa um expressivo avanço. Em um país inserido em relações sociais capitalistas internacionais, a partir de uma condição subalterna e dependente, fundado em um modelo político arcaico, com suas múltiplas expressões de autoritarismo, manifestas por meio do paternalismo, do coronelismo, do patrimonialismo, do conservadorismo, das trocas e favores, de um regime de intensa exploração da força de trabalho, regido a partir de relações de opressão, violência, discriminação de classe, gênero, etnia, orientação sexual, credo religioso, geracionalidade e de estrutura e funcionalidade dos corpos (aqui mencionando as pessoas com deficiência), a democracia que defendemos segue sendo uma utopia em constante construção coletiva.

Hoje, 25 de outubro de 2024, comemoramos oficialmente no Brasil o “Dia Nacional da Democracia”, definido a partir da aprovação do Projeto de Lei (PL) nº 6.103/2023, de autoria da senadora Eliziane Gama (PSD/MA). A data escolhida é uma homenagem ao jornalista Vlademir Herzog, relembrando o dia em que foi encontrado sem vida em uma sela, após ter sido arbitrariamente preso e sofrido processos de tortura nos porões da ditadura civil-militar no Brasil, no ano de 1975. Sua morte foi forjada, de forma grosseira, buscando parecer que ele havia cometido suicídio por enforcamento. Contudo, a foto emblemática, e que expõe a farsa, mostra que tal fato seria impossível de acontecer. Herzog é um símbolo de luta pela democracia e de combate à censura à imprensa no período ditatorial pelas investigações jornalísticas que realizou acerca de crimes de tortura em nosso país, crimes dos quais ele próprio foi uma vítima. “Lembrar para não esquecer”, é uma das frases que virou um símbolo de resistência democrática.

Particularmente, para nós, assistentes sociais, a democracia passa a adquirir um sentido mais complexo que a mera retórica abstrata trazida pelo formalismo de gênese burguesa. Não é possível ter uma democracia real, concreta e substantiva quando não se toma a realidade “pela raiz”, como diria um velho pensador alemão do século XIX. Não se pode ter democracia quando alguns poucos têm tudo, a grande maioria tem muito pouco e outros tantos não têm nada. Não é possível falar em democracia diante de realidades nacionais historicamente tão antagônicas, com uma desigualdade social abissal e que faz conjugar no Brasil locais que têm realidades de desenvolvimento da Suécia e outros da Somália (respectivamente, o país mais rico do mundo, localizado no continente europeu, e o país mais empobrecido do mundo, localizado no continente africano).

A fome, a pobreza, a violência, a discriminação, os extremismos do conservadorismo e do reacionarismo, a falta de acesso aos direitos sociais e de investimento em políticas públicas de proteção social das massas no Brasil, fundamentalmente da educação, saúde, previdência, habitação, saneamento básico e renda, são elementos estruturantes dessa desigualdade social, que forja uma “plutocracia” (mais uma vez, a “democracia dos ricos”) em detrimento da democracia que queremos e merecemos em nosso país. A defesa da liberdade, como valor ético central para nós, assistentes sociais, pressupõe pensar nas garantias e direitos sociais fundamentais e que devem estar acessíveis a cada cidadão e cidadã brasileiro(a). Essa democracia deve se basear na “justiça social”, aquela que transcende os espaços de garantias dos tribunais e ganha as ruas, chega a todas(os) nós. Somente em igualdade de condições e oportunidades – o que pressupõe a superação da atual sociabilidade burguesa e do estado de coisas que ela produz – é que conseguiremos forjar o caminho para a democracia que tanto almejamos em nosso país.

Construir a democracia no Brasil não tem sido tarefa fácil, principalmente para nós, assistentes sociais, que labutamos cotidianamente em nossos espaços sócio-ocupacionais, para reafirmar e viabilizar direitos, mesmo quando os nossos próprios têm sido constantemente negados. As precárias condições de trabalho, as médias salariais muito baixas, a desvalorização profissional, a falta de incentivo ao nosso trabalho, os cortes nos recursos públicos, as ingerências e demais formas de sabotagem, inclusive, e porque não dizer, entre os nossos pares, constituem-se em barreiras adicionais para a consolidação da democracia a cada novo dia.

Por isso, afirmo que a democracia é um caminho tortuoso e longínquo, de solo íngreme, desnivelado e, por vezes, árido e lamacento. Todavia, se trilhado por todas(os) nós, com persistência e convicção, em uma jornada na qual ninguém solta a mão de ninguém e que é trilhada sobre as sólidas bases do conhecimento crítico da realidade em que vivemos e do traçado ao qual devemos percorrer, chegaremos a um lugar que, longe de ser o “nirvana”, será muito melhor para se viver.

Viva o 25 de outubro, Dia Nacional da Democracia!
Aracaju/SE, 25 de outubro de 2024

*Júlio César é Sergipano de Aracaju, graduado em Serviço Social e mestre em Sociologia pela UFS, tendo ainda doutorado em Política Social pela UnB. Foi conselheiro do CRESS/SE (2011/2014) e trabalha como assistente social na previdência social (INSS) em Sergipe desde 2009. 

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